sábado, 26 de outubro de 2013

ACIDENTES DE TRÂNSITO

ENTREVISTA

ACIDENTES DE TRÂNSITO

Julia Greve é médica fisiatra e trabalha no Instituto de Ortopedia e Traumatologia da Universidade de São Paulo.
Nas grandes cidades brasileiras, especialmente em São Paulo, é enorme o número de acidentes de trânsito. Grande parte, felizmente, é constituída por abalroamentos sem vítimas e o prejuízo é só material.
Alguns acidentes, porém, são mais graves. É o caso dos atropelamentos de pedestres e dos acidentes com motos, veículos que têm infestado ruas e avenidas das cidades maiores e mais densamente povoadas. Os motoqueiros prestam um serviço importante, levando papéis ou pequenas encomendas de um canto para outro mais rapidamente do que se fosse usado outro meio de transporte. No entanto, trata-se de uma atividade de alto risco. Eles se locomovem, muitas vezes imprudentemente, por entre as filas dos carros e acidentam-se com muita facilidade.
Em relação aos acidentes automobilísticos, o uso obrigatório do cinto de segurança representou um avanço na proteção de motoristas e passageiros, mas ainda não consegue evitar um tipo de traumatismo chamado chicote, ou seja, a batida dos carros faz com que a cabeça seja jogada bruscamente para frente e para trás o que pode provocar uma lesão na medula espinhal na altura da coluna cervical com sequelas muito graves.
PRINCIPAL CAUSA DE MORTE NA JUVENTUDE
Drauzio – Qual é a magnitude do problema representado pelos acidentes de trânsito em termos de morbidade e mortalidade em nosso País?
Julia Greve – Nos pacientes jovens, com menos de 35 anos, os acidentes de trânsito e a violência urbana são as causas mais importantes de mortalidade. Especificamente, em se tratando da população masculina com menos de 35 anos, os acidentes de trânsito são a primeira causa de morte no Brasil inteiro. Embora não tenhamos dados confiáveis a respeito, provavelmente eles sejam também a causa principal de morbidade, lesões e incapacidades graves nessa faixa etária.
Drauzio – Entre os acidentes de trânsito, quais são os mais frequentes?
Julia Greve – Apesar de o Brasil ser um país tão grande e com tantas estradas, os acidentes ocorrem com mais frequência dentro do perímetro urbano, nas ruas ou avenidas de alta velocidade. Em geral, são acidentes graves e os que trazem maiores problemas em termos de saúde. Em cidades como São Paulo, por exemplo, prevalecem os atropelamentos e os acidentes com motocicletas nos quais as vítimas costumam sofrer lesões muito sérias e até fatais.
A propósito, não se pode deixar de mencionar a questão do álcool, uma droga lícita responsável por grande parte dos acidentes. Todo o mundo acha que pode beber um pouco, pegar o automóvel e sair por aí e nossa sociedade é permissiva e complacente com as pessoas que dirigem embriagadas.
ÁLCOOL E ACIDENTES DE TRÂNSITO
Drauzio – Em países com leis rígidas em relação ao álcool, nota-se que a população leva isso muito a sério. Numa festa, os que vão dirigir na volta para casa não experimentam uma gota sequer de bebida alcoólica. No Brasil, ao contrário, no que se refere ao uso do álcool, as restrições existentes para as pessoas que vão pegar num volante são logo desrespeitadas e elas voltam a dirigir embriagadas.
Julia Greve – O Código de Trânsito promulgado em 1997 prevê penas severas para o motorista que dirige embriagado. Ele perde a carteira de motorista e responderá a processos se for apanhado dirigindo bêbado. No entanto, como costuma acontecer em nosso País, não há fiscalização efetiva sobre os transgressores. Parece não existir, ainda, por parte das autoridades e dos cidadãos, a preocupação com o fato de que o álcool é a grande causa de morte no trânsito, e isso impede a adoção de medidas efetivas para resolver o problema.
Num primeiro momento, policiamento e repressão forte é o que resolve. Claro que programas educativos são importantes. No Japão, se o indivíduo for apanhado dirigindo embriagado, as sanções são pesadas. Ele perde a carteira e vai preso. Mesmo nos Estados Unidos ou na Alemanha, país em que as pessoas ingerem habitualmente mais álcool, nota-se um comportamento mais responsável em quem bebe e pretende dirigir. É uma questão de postura social. O brasileiro é mais permissivo e não demonstra estar preocupado o bastante quanto à educação dos filhos no que se refere ao álcool.
Quem já não escutou – “Bebe um pouquinho. Tudo bem. Um pouco só dá para dirigir”. Na verdade, não é bem assim. Mesmo bebendo pouco e a coordenação motora não estando seriamente comprometida, a euforia provocada pela bebida pode ser tão perigosa quanto não conseguir manobrar o volante com destreza.
Drauzio – Nos países em que a legislação é rígida, o uso do bafômetro é encarado com naturalidade e não é raro encontrar pessoas que foram testadas várias vezes por ano nas ruas, na saída dos supermercados ou perto de bares e cinemas. Aqui, não conheço ninguém que tenha passado por essa experiência. Essa certeza de impunidade facilita o consumo de bebidas alcoólicas. É comum ver nas ruas, especialmente nas noites de sextas-feiras e nos finais de semana, gente bêbada dirigindo automóveis, fazendo acrobacias mirabolantes e pondo em risco a própria vida e a vida dos outros. Você não acha que deveria haver uma conscientização maior associada a uma fiscalização eficaz e permanente para reduzir o número de acidentes de trânsito?
Julia Greve – Acho que as duas medidas devem ser tomadas conjuntamente. Num primeiro momento, como o problema é grave, a repressão tem de ser enérgica e é inevitável. Na legislação brasileira existe um empecilho importante. A Constituição Federal reza que o indivíduo não pode fornecer provas contra si próprio e ele está fazendo isso no instante em que embriagado sopra no bafômetro. Esse artifício jurídico precisa ser discutido. Até que ponto uma pessoa embriagada, que coloca em risco a vida dos outros, tem o direito de negar-se a fazer esse exame?
Nos países que levam o problema a sério, se a quantidade de álcool presente no ar alveolar superar os níveis permitidos por lei, o infrator é levado à delegacia onde pode ser submetido a exames complementares, mas aquela primeira soprada é prova cabal e indiscutível de que ele estava embriagado e transgredindo a lei. No Brasil, como o sujeito pode negar-se a soprar o bafômetro, é levado à delegacia para colher sangue e tem de esperar o médico legista para uma avaliação. Com isso, já se passaram duas ou três horas, o nível de álcool no sangue baixou e não há punição possível. Pensando nisso, é que defendo a idéia da repressão. A sociedade precisa entender que essa história de dar um jeitinho de que se vangloriam tanto os brasileiros não resolve coisa alguma.
Por outro lado, o exemplo dos pais é fundamental para os filhos aprenderem que, sob nenhum pretexto, devem dirigir embriagados. Acidentes de trânsito não são privilégio do Brasil. Existem no mundo inteiro, mas aqui o número de mortes ligadas a indivíduos, que beberam mais do que deviam, é maior por causa da certeza da impunidade.
NÍVEIS DE ALCOOLEMIA
Drauzio – Nos países de legislação mais rígida, as pessoas sabem exatamente o que podem beber antes de pegar no volante. No Brasil, isso não está claro. As pessoas custam a entender que beberam demais, sempre se julgam aptas para dirigir e é raro entregarem a chave do carro para quem não bebeu. Segundo as leis em vigor no País, o nível de álcool permitido é de até 0,6g por litro de sangue. Quanto uma pessoa pode beber para atingir esse limite de concentração de álcool no sangue?
Julia Greve – Considerando a média das pessoas (homens, mulheres, peso, altura, etc.), a maioria pode beber duas latas de cerveja, ou uma dose de bebida destilada forte, como uísque ou vodca, diluída em água ou soda, ou um copo, um copo e meio de vinho. Uma dessas doses fará com que a alcoolemia alcance quase 0,6g/l. Portanto, a pessoa estará perto do limite permitido por lei, o que não quer dizer que esteja em condições de dirigir, porque existem algumas que se alteram com pequena quantidade de álcool. Está provado que nas mulheres, nos magros e em quem não está acostumado a beber, o álcool demora mais tempo para diluir-se no sangue e provoca certa euforia que interfere na autocrítica e na habilidade para guiar um automóvel.
Esse é outro ponto importante que se deve destacar. A pessoa bebe para ficar mais alegre, para se liberar e a primeira coisa que perde é a capacidade de avaliação crítica. Inúmeros trabalhos demonstram que o indivíduo que sofreu um acidente e estava embriagado, esqueceu-se também de colocar o cinto de segurança, correu demais e foi imprudente na direção. Por isso, há países que advogam alcoolemia igual a zero para o motorista. Quem vai dirigir não deve beber, porque são imprevisíveis as alterações comportamentais que o álcool pode provocar. É o caso do meninão que bebe na boate para ter coragem de paquerar a menina e acaba se acidentando seriamente na volta para casa.
Drauzio  Você diz que duas latinhas de cerveja, ou dois copos de vinho, ou uma dose de bebida destilada são o suficiente para atingir a alcoolemia de 0,6g por litro que é o nível de álcool no sangue permitido pela legislação brasileira. Eu diria que, nas noites de sexta-feira, praticamente todos os jovens que dirigem estão infringindo a lei. Não conheço rapaz que saia para um programa e beba somente uma latinha de cerveja, por exemplo.
Julia Greve – Certamente eles bebem mais, mas como a cerveja é uma bebida em que o álcool é diluído em grande quantidade de líquido, ele pode não atingir o nível de alcoolemia se beber três ou quatro latinhas durante um longo período de tempo. Bebidas destiladas, ao contrário, concentram grande quantidade de álcool em pequeno volume de líquido e mais de uma dose extrapolam os limites aceitáveis pela legislação.
Se o vinho for tomado acompanhando as refeições, a absorção é mais lenta. Parece razoável que duas pessoas bebam uma garrafa durante o jantar. Elas podem não estar embriagadas, mas a dosagem da alcoolemia provavelmente indicará que o limite foi alcançado.
Estudo realizado com alunos da Faculdade de Medicina revelou que, depois da terceira lata de cerveja, tanto bebedores inveterados quanto os não habituais tinham ultrapassado o nível de 0,6g/l. Tratava-se de uma situação particular, porque eles estavam proibidos de ingerir alimentos. É claro que se pudessem comer alguma coisa, a absorção seria menor.
No entanto, as pessoas precisam ficar atentas. Mesmo a cerveja, considerada a bebida nacional e classificada como fraquinha, tem álcool em quantidade suficiente para provocar alterações importantes. Essa é uma das grandes preocupações que se deve ter no Brasil. Os números do IML indicam que 50% dos mortos vítimas de acidente de trânsito estavam embriagados no momento do acidente.
Drauzio – Esse é um número viciado porque não considera os que estavam embriagados e não morreram.
Julia Greve – E há outros aspectos. Esse número se refere às vítimas que morreram e foram autopsiadas no IML, o que não acontece com todos os acidentados. Além disso, muitos motoristas embriagados não se ferem nos acidentes, mas provocam a morte de terceiros que não estavam embriagados.
Drauzio – Como você acha que esse assunto deve ser tratado?
Julia Greve – O problema do álcool é sério e a solução não é simples. A repressão é importante, assim como o é a educação. A questão é como convencer um jovem de que ele não pode beber. Campanhas moralistas não surtem nenhum efeito. A mídia está repleta de mensagens do tipo: “Se beber, não dirija”. De certa forma, essa banalização do assunto faz com que as pessoas se mostrem anestesiadas e não se impressionem com o testemunho de alguém que sofreu um acidente grave depois de ter bebido. Os aspectos educativos são importantes, mas é preciso conscientizar a sociedade de que muita gente está morrendo por causa disso e que inverter essa situação é responsabilidade de todos.
ACIDENTES COM MOTOS
Drauzio – Que perigo as motos representam no trânsito das grandes cidades?
Julia Greve – Nas regiões urbanas, em termos de vítimas graves ou fatais, acidentes com motos só perdem um pouco para os acidentes com pedestres. Se considerarmos o número de pessoas que anda a pé e o número de motoqueiros, proporcionalmente as motos representam um problema maior na cidade de São Paulo. Basta observar como os motoboys dirigem entre os automóveis nos corredores de trânsito para se ter uma ideia do risco que correm. De um lado são jovens com menos de 20 anos submetidos a condições de trabalho absurdas que ganham por corrida que fazem e têm de cumprir prazos e horários rígidos. De outro, são jovens interessados num esporte radical que lhes libere muita adrenalina.
As autoridades de trânsito devem estar conscientes do problema, mas acredito que haja certa pressão para manter essa atividade profissional num país em que arranjar emprego está cada dia mais difícil. No entanto, as perdas humanas e os custos sociais são bastante altos. Em geral, as empresas não registram esses funcionários que trabalham como autônomos, não têm seguro saúde e vão parar nos hospitais públicos onde chegam a ficar internados por meses, às vezes, um ano inteiro, e de lá saem, em muitos casos, com sequelas permanentes. As empresas deveriam incluir no custo um seguro para os motoboys que sofressem um acidente. Além disso, é preciso tomar providências a fim de evitar que nossos jovens continuem morrendo por uma postura inadequada no trânsito.
LESÕES NOS ACIDENTES DE MOTOS
Drauzio  Uma cidade como São Paulo talvez não dispense mais o trabalho dos motoqueiros que circulam feito formigas em alta velocidade pelos corredores de trânsito. Suas atitudes são temerárias e parece que não contam com a possibilidade de um imprevisto. Que tipo de lesões eles sofrem com mais frequência?
Julia Greve – As pernas costumam ser a região mais comprometida nos acidentes de moto, principalmente a tíbia, osso muito exposto e desprotegido. Não importa como tenha ocorrido a acidente, o motoqueiro sempre cai da moto. Muitas vezes é lançado longe e sofre lesões graves com perda de pele que infeccionam e demandam longo tempo de tratamento ou até mesmo a amputação do membro.
Na verdade, num país sem campos minados nem guerras, estamos criando uma geração de indivíduos que perderam a perna em acidentes de moto ou que tiveram que amputá-la como consequência desses acidentes.
Em segundo lugar, vêm os traumatismos da face e do crânio, em geral traumas mistos também com lesões graves. A propósito, é importante observar que alguns trabalhos de campo com motoqueiros mostram que as condições do capacete que usam deixam muito a desejar. Os protetores estão vencidos ou foram retirados, a mentoneira está quebrada ou não existe, e os capacetes servem, quando muito, para esquentar a cabeça e enganar a fiscalização. Quando arremessados da moto, os motoboys batem a cabeça que é pesada e está mal protegida e sofrem traumas de crânio de difícil e lenta recuperação. Eles ficam em coma durante muito tempo e nunca se sabe como será sua recuperação.
Em terceiro lugar, estão as lesões dos braços e do plexobraquial, nervos que enervam os membros superiores. Os motoqueiros podem sofrer trações violentas provocadas por movimentos bruscos da coluna cervical em relação ao tronco e que resultam em estiramento ou ruptura. O plexobraquial é arrancado na região da medula na altura da coluna cervical, o que resulta em paralisia do membro afetado. Às vezes, essas lesões são tão graves que nenhuma microcirurgia consegue reparar o dano e fazer o paciente recuperar os movimentos.
Por fim, vêm os acidentes que lesam tronco e coluna. Quando o motoqueiro está em velocidade e bate em alguma coisa ou se depara com um obstáculo, é lançado longe, porque a energia acumulada na moto é transferida para seu organismo. Dessa forma, tanto motoqueiros quanto pedestres recebem um impacto sem nenhum tipo de proteção o que explica a gravidade das lesões sofridas por esses indivíduos. Nos automóveis, o ocupante que usa o cinto de três pontas está muito mais protegido do que aquele que não o usa.

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